Esquecimento
Ralph Martel é um escritor famoso, reconhecido internacionalmente pela sua incrível marca de 119 livros publicados. É o escritor com mais livros publicados na atualidade. Suas obras estão entre os mais vendidos no ranking da Veja, Folha de São Paulo e lá fora, no New York Times.
Ganhou o prêmio de escritor do ano pela vigésima vez. Esse é seu outro orgulho, a sala de troféus. A primeira é sua biblioteca particular formada por seus livros que dividia espaço com a sala de troféus.
Em um canto da sala, algo que destoava do ambiente. Era um livro diferente de todos os outros, com capa de couro grosso e fecho com uma tira também de couro travada com uma presa canina.
Estava pousada em uma mini estante para livros toda aveludada. O marcador de páginas do livro, parecia uma orelha com ponta. O livro pulsava levemente como se respirasse. Era o único movimento na sala escura.
Noite fria de sábado em São Paulo. Dentre as dezenas de eventos naquela noite, a mais badalada, pelo menos para os amantes da leitura, era a noite de autógrafos do lançamento do 120o livro de Ralph Martel.
Uma semana atrás...
Ralph raramente aparecia, mas desta vez seria diferente. Queria autografar o máximo de livros possíveis. Por isso organizou tudo nos mínimos detalhes. Escolheu um fim de semana com menos eventos. Um sábado que não tinha nenhum lançamento literário. Convocou a imprensa falada e escrita, fotógrafos. Programou com a editora que o livro teria 80% de desconto se fosse autografado. Isso aumentaria a frequência. Procurou alguns “crackers” e conseguiu que eles enviassem “spans” para milhares de pessoas, falando do livro, do desconto e onde consegui-lo.
Tudo isso, para escapar do trato que fizera quando era jovem.
30 anos atrás...
Ralph ainda era um aspirante a escritor. Um contista que publicava seus contos na internet. Estava cansado da pouca visualização que vinha tendo. Associava-se à vários grupos para divulgar o máximo o seu trabalho, mas só conseguia algumas críticas e um ou outro elogio de algum leitor fiel.
Até que um dia extravasou. Gritou que não era justo, que ele tinha talento, só que ninguém reconhecia. Nesse momento, recebeu um e-mail. Não tinha origem, mas tinha um título chamativo.
“Se você se sente frustrado, leia antes de apagar.”
Ficou curioso com o título e resolveu lê-lo. Ali, naquele e-mail, descrevia todo o seu sentimento, sua angústia, sua raiva e sua tristeza. No final, tinha um “link” com um aviso. Se ele quisesse por um fim nisso tudo e ter uma carreira de sucesso como escritor, bastaria ele clicar em “aceitar” no final do contrato.
Sem perder tempo e nem mesmo ler o contrato, aceitou.
No dia seguinte, uma editora desconhecida, entrou em contato com ele. Disse que tinha lido alguns de seus contos e que ele levava jeito. E assim ele ficou como o principal escritor dessa editora.
Todos os seus livros eram sucesso de vendas. Tinha uma média de quatro livros por ano e eles esgotavam no dia do lançamento.
Atualmente... (uma semana atrás)
Enriqueceu, ficou famoso e conhecido. Passou 30 anos de sua vida escrevendo para a mesma editora , a qual nunca vira nenhum integrante. Tudo era resolvido por e-mail ou por correio. Seu pagamento era creditado diretamente em sua conta corrente em espécie e o recibo, enviado por Sedex. Nem lembrava mais do contrato que havia aceito no passado. Até agora.
Havia recebido um e-mail da editora marcando a data de lançamento do seu 120o livro “Será o fim?” e já se preparava para desligar o computador, quando recebeu outro e-mail.
Novamente, sem remetente. Sentiu um frio na barriga e lembrou-se da ultima vez que recebeu um e-mail assim. Apagou-o. Logo em seguida veio outro, e mais outro. Resolveu desligar o computador. Seu celular começou a vibrar, indicando que havia recebido mensagem, “não se esqueça do contrato”. Pager, fax, telefone, palmtop, qualquer equipamento de mensagem em sua casa começou a tocar. A televisão ligou sozinha, e um homem com terno bem alinhado apresentava o programa, a câmera não focalizava seu rosto, somente o tronco. Ele estava em um ambiente, ou pelo menos parecia estar, desolado. Ele abriu o paletó e tirou uma carta enrolada e amarrada com um barbante vermelho. Colocou a carta aberta em frente a câmera, e no close, via-se os dedos vermelhos com unhas bem longas. Lembrou-se das primeiras palavras do contrato. Era o mesmo que ele havia aceito há trinta anos atrás.
Ralph, desta vez, leu todo o contrato. Quando chegou no final, estava em prantos. Só conseguia balbuciar.
“Meu Deus, o que que eu fiz?”
Todos os equipamentos pararam de tocar e a televisão, assim como ligou, também desligou. A casa mergulhou no silêncio. Ralph ficou um tempo pensativo, depois começou a agir. Começou a ligar para jornais e “talk shows” concedendo entrevistas.
Hoje...
Muitas pessoas compareceram para a noite de autógrafos. Tiveram que organizar sessões para evitar o tumulto. Como estava ficando tarde, a empresa que organizava o evento, resolveu estender para o dia seguinte, estipulando um novo horário, desta vez mais cedo para dar tempo a todos, o que foi bem aceito.
Estranhamente, no dia seguinte não havia tanta gente assim, não como era esperado. Encerrada as sessões de autógrafos, Ralph correu para casa e foi direto para sua biblioteca. Procurou seu primeiro livro, ainda estava lá, mas quando abriu, só viu páginas em branco. Logo em seguida, o livro esfarelou, virou poeira em suas mãos. Os próximos cinco livros da estante tiveram o mesmo destino. Ralph ligou seu computador e pesquisou seus livros na internet. Não havia referência sobre eles, como se nunca tivessem existido. Procurou pelo seu nome. Antes eram milhares de referências, agora eram algumas centenas apenas. Seu celular tocou novamente. Tinha receio de atender. Quando viu no visor que era da rede globo, resolveu atender. Era a assistente de produção do “Programa do Jô”, cancelando a entrevista. Recebeu mais dois e-mails de cancelamento de entrevista. Um era do “Larry King” e o outro era da “Oprah”.
Seu mundo estava desabando. Toda a sua fama e sucesso estava indo pelo ralo. Ouviu um ruído em sua estante e mais dez livros tinham virado pó e depois até o pó desaparecia. Resolveu dar uma volta. Tinha que ter uma solução. Não podia acabar assim. Enquanto caminhava, um jovem o abordou com um livro na mão.
- Ei! Você não é aquele escritor famoso?
A alegria voltou aos olhos de Ralph.
- Aquele dos filmes? Poderia autografar o meu livro?
Ralph quase assentiu, mas pressentiu algo errado. Pegou o livro já aberto na primeira página branca e perguntou o nome do rapaz.
O garoto, avidamente pegou o livro e foi ler a dedicatória.
- Ralph Martel? Quem é Ralph Martel? Pensei que você fosse o Stephen King. Cada maluco que me aparece.
Saiu irritado, resmungando que tinha estragado o livro, deixando Ralph mais desolado. Estava acontecendo rápido demais.
Voltou para casa e foi direto para sua biblioteca. Mais da metade tinha virado pó.
Precisava fazer algo. Mas o quê? Não havia nada que pudesse ser feito. Toda referencia a seu nome estava desaparecendo, sumindo, evaporando, virando pó.
Lembrou de seus troféus Abriu a porta da divisória que dividia a biblioteca da sala de troféus Eles certamente estariam inteiros, pois eram de metal e vidro.
Ao olhar a estante, seu queixo caiu, literalmente. Só havia metal retorcido e vidro quebrado.
Não havia outra alternativa, a não ser recorrer ao livro. Era a única forma de não ter o mesmo destino de suas obras. Foi até ao canto da sala e tremulo, abriu-o.
Toda a sua vida pareceu-lhe diante de seus olhos. Sua juventude como escritor, sua acensão e seu futuro. Fechou o livro e jogou-o num canto, este incendiou-se no ar espalhando fagulhas nas cortinas que rapidamente incendiaram-se. O fogo espalhou por toda casa. Ralph conseguiu sair somente com as roupas do corpo. Nem ao menos os documentos conseguiu salvar. O incêndio tomou proporções gigantescas. Uma multidão abria caminho para os bombeiros começarem a agir. As investigações e reportagens já estavam no local, indagando aos populares e vizinhos sobre o proprietário da casa e seu paradeiro e se havia sobreviventes.
Estranhamente ninguém se lembrava de nada. Um vizinho da frente chegou a dizer ao repórter, que não se lembrava de ter visto movimento naquela casa, ninguém entrando ou saindo durante muito tempo.
Um mês depois...
Em uma avenida movimentada de São Paulo, um senhor esmolava, ou melhor, trocava poesias por qualquer valor, em frente a um dos bancos que se enfileiravam na avenida.
Um ou outro jogava moedas em um pequeno tapete e em troca, ele dava um pedaço de papel com um poema e agradecia a oferta. Dia após dia, desta mesma forma era sua vida.
Certo dia, um casal com uma criança, uma menina, passaram por ele.
- Papai, papai, dá alguma coisa pra ele.
O pai constrangido com o pedido da filha, enfia a mão no bolso e retira uma nota de vinte reais e entrega para a menina para que entregasse ao pedinte.
- Toma moço. - disse a menina, apesar da barba e o cabelo desgrenhado e grisalho do pedinte.
- Muito obrigado minha querida, pegue uma poesia para você. - disse o velho olhando nos olhos da menina, que por sinal eram bem claros.
- Sabe moço – disse a menina bem baixinho para que os pais não a ouvissem – eu sei quem você é. Posso lhe devolver tudo que você perdeu. Basta que você se curve diante de mim. Nesse momento os olhos da garota ficaram negros e brilhantes.
O velho abriu um largo sorriso. Valeria a pena passar por tudo isso de novo?
Texto: Jack Sawyer
Enredo de Rita Maria Felix da Silva
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