VINGANÇA DO CORAÇÃO
No
meio da madrugada, o telefone toca insistentemente. Dijorje fica
deitado, sonolento, esperando que o telefone parasse de tocar. Mas
ele não para. Meio a contragosto, ele atende.
- Alô?
- Doutor? É o Maiko. - Diz a voz do outro lado da linha.
Um
alerta dispara na cabeça de Dijorge. Ele levanta da cama, já
desperto e por hábito, já começa a se vestir, ainda com o receptor
no ouvido.
- Fala Maiko.
- Aconteceu de novo.
- Onde você esta?
- Perto da ferrovia.
- Estarei aí em dez minutos.
Dijorge
era delegado de polícia de uma pequena cidade. Beirava a casa dos 40
anos, porte atlético, cabelos grisalhos penteados para trás.
Rapidamente se vestiu finalizando com a jaqueta preta surrada, a arma
e o distintivo, que prendeu no cinto da calça.
***
- Boa noite doutor?
- Bom dia, você quer dizer. Que por sinal, é um péssimo jeito de começar o dia.
- Já viu o corpo?
- Já.
- E …?
- Aparentemente, pescoço quebrado. Mas vou ter mais detalhes quando fizer a autópsia.
- Claro. Maiko?
- Sim senhor.
- O que me diz?
- Alguma testemunha?
- Não senhor.
- Hummm.
- Doutor Milton. - disse Dijorge – É todo seu.
Milton,
além de legista também era médico da cidade. Conhecia todo mundo e
se orgulhava disso. Estava prestes a se aposentar e iria se dedicar
somente aos seu pacientes vivos.
Quando
estavam removendo o corpo, Dijorge percebeu um brilho no chão, no
local onde estava o corpo.
- Esperem. - gritou para os enfermeiros que estavam colocando o corpo na maca.
- Doutor, o senhor mexeu no corpo? - perguntou para o doutor Milton.
- Não, só verifiquei a posição da cabeça e os sinais vitais e supus que fosse pescoço quebrado. Porque?
- Veja. - e apontou para o chão – Tem sangue aqui. Maiko recolha uma amostra desse sangue e leve para análise. Doutor, vire o corpo por favor.
Ao
olharem para as costas do indivíduo que jazia nama, não perceberam
nenhum ferimento. Não havia nada na frente também.
- Doutor, gostaria que autopsiasse esse corpo o mais rápido possível.
- Pode deixar Dijorge.
***
- Mandou me chamar doutor?
- Sim, chamei.
- O que temos então?
- A vítima é Júlio Dauton, filho dos Dautons. Branco, 25 anos, saúde perfeita. Morreu por esmagamento da vértebra na base do crânio. Muito jovem para ter problemas do coração e...
- Espera aí. - interrompeu o delegado – o senhor acabou de dizer que ele morreu com o pescoço quebrado.
- Pois é, mas tem umas particularidades. O corpo estava sem sangue e sem o coração.
- Como assim, sem o coração? Como foi retirado?
- Não sei explicar. Não havia cortes ou perfurações no corpo todo.
- E o sangue encontrado no local?
- Era dele mesmo.
- A família já sabe?
- Eu os avisei antes de te chamar. Logo estarão aqui.
- Olhe doutor, não mencione a ausência do coração da vítima.
- Pode deixar.
- O que acha Maiko?
- Isso parace coisa de outro mundo. É o segundo caso estranho. Lembra? O outro o ano passado? E foi do mesmo jeito.
- Tudo bem Maiko, pode ir.
Dijorge
volta para sua sala na delegacia e fica pensativo.
“Não
pode estar acontecendo de novo” - pensa ele - “Mais uma vítima
morta sem órgão e sem explicação”.
Puxa
a gaveta de sua mesa e tira um caderninho antigo, uma agenda. Abre na
letra “P” e vai correndo a lista com o dedo indicador. Encontra
uma anotação má escrita com o número de telefone na frente. Fica
indeciso. Será que vale a pena chamar ela? Envolver mais alguém?
Pega
o aparelho e puxa para mais perto de si e disca o número
pausadamente.
- Alô?
- Alô. Quem está falando? - responde uma voz feminina do outro lado da linha, após o segundo toque.
- Oi Pam, é o “Didio”.
- Senhor Dijorge. Como vai maninho?
Pamela
ou “Pam” como ele a chamava, era a irmã mais nova de Dijorge.
Era fascinada por coisas exóticas e assuntos sobrenaturais, fato
esse, que afastou os dois irmãos. Dijorge não entendia e nem
aprovava esse assunto. Nos encontros familiares evitava conversar com
ela, pois sempre o era conduzido as teorias de Pam, com uma
explicação sobrenatural para cada coisa. Porém agora, necessitava
de uma explicação. Precisava expandir seu modo de ver as coisas. Do
jeito que as coisas iam estava quase acreditando que fora o Ajax1
que havia cometido a extração do coração
- Eu vou bem, mas tem um assunto que está me incomodando.
- Eu posso ajudar em alguma coisa?
- Você ainda mexe com... bem... você sabe o que eu quero dizer.
- Ocultismo, sobrenatural, fantasmas, não precisa ter medo de falar, mas respondendo sua pergunta, sim, ainda estou envolvida com isso. Porque pergunta?
- Lembra, o ano passado, quando eu lhe falei de um caso estranho?
- Lembro. A vítima morreu de ataque do coração apesar de gozar de boa saude. O que tem a ver?
- Isso é o que consta no laudo da perícia. Na verdade faltou um detalhe. A vítima estava sem sangue e sem o coração. Achei que era alguma seita satanista. Não consegui resolver o caso e acabei arquivando.
- Sim e agora resolveu reabrir o caso e pedir minha ajuda? - respondeu Pam em tom de ironia.
- Não engraçadinha. Tive outro caso igual hoje de madrugada.
- Nossa.
- Pam, você poderia vir aqui?
- Mas é claro. Agora fiquei interessada estarei aí em uma hora, no máximo duas horas.
***
- Eu queria falar com o doutor Dijorge.
- Segunda porta a esquerda. - disse um dos detetives.
Ela
andou pelo corredor seguida por um amigo.
- Olá doutor.
- Pam! Entre.
- Trouxe um amigo. Esse é Jairo.
- Muito prazer. - cumprimentou Jairo.
- Vocês dois são...
- Não mano, ele é meu colega de trabalho. Ele é especialista em fotografia. Ele criou um software para filtrar a imagem da foto, além do espectro que nossos olhos permitem ver.
- Falando em foto, Maiko meu assistente, conseguiu essas fotos de uma câmera instalada na central ferroviária.
Dijorge
mostrou as duas fotos, uma mostrava o garoto ainda de pé com a
cabeça inclinada para esquerda e na outra ele jazia no chão.
- Posso dar uma olhada nas fotos? - perguntou Jairo.
- Claro, que mal há?
Jairo
abre uma maleta e retira seu “notebook” de dentro e um “scanner”
de mão. Monta toda a aparelhagem em uma mesa vazia e prepara para
“scannear” a foto.
- Qual a história da cidade? - pergunta Pam para o delegado.
- A cidade é antiga. Já houve conflito para disputa de terras entre os colonos e os nativos.
- Resumindo, é uma terra manchada de sangue.
- É. Basicamente é isso.
- Venham ver isso. - disse Jairo.
Os
dois se agruparam, um de cada lado de Jairo, olhando para o
“notebook”.
- Eu “scanneei” a foto e coloquei no software que eu desenvolvi. O que vamos ver aqui, são algumas variações das fotos com vários espectros de da luz que os olhos humanos não podem ver.
Com
vários “clics” as imagens começaram a mudar, perdendo um tom de
cor de cada vez chegando em uma imagem com uma sombra próxima ao
corpo da vitima.
- O que é isso aí? - pergunta o delegado.
- Isso, meu caro irmão, é um fantasma. - declara Pam com um enorme sorriso de satisfação .
- Como assim? Isso não é possível.
- Esta aí o seu assassino. Esta vendo aqui e aqui? - diz Pam apontando alguns pontos na tela. - Está vendo o braço dele atras da vitima, com o coração na mão? Na verdade, atravessou o corpo e retirou o coração.
- Não! Isso não é possível. É loucura.
- Teoricamente, quando um espirito esta com muita raiva, ele consegue se materializar e movimentar coisas, mas isso consome muita energia dele e, particularmente eu nunca vi isso. E você Jairo?
- Também não. Mas se ele esta com raiva, precisamos saber o motivo.
***
- Segundo os arquivos, as famílias da vitimas tinham algo em comum. Eram descendentes dos fundadores da cidade, que entraram em conflito com os nativos.
- Há mais algum descendente dos fundadores? - pergunta Pam.
- Segundo os arquivos, tem mais um vivo. Wilian Flandres. Uma das famílias mais briguentas da cidade.
- Temos que ficar de olho nele.
- Mas como? Como ver um fantasma, se é que ele existe? - perguntou Dijorge desesperado.
- Eu já cuidei disso. Quando me ligou, relatando o caso, eu pensei em várias possibilidades e trouxe alguns equipamentos, inclusive esses óculos, que funcionam como uma mistura de visão noturna com raio x, por isso pode atravessar sólidos e a gente pode ver nitidamente o espectro.
***
- Me sinto um besouro com esses óculos. Até que horas vamos ficar rodando a cidade? - reclama Jairo.
- Até acharmos onde ele está enterrado.
- Para, para. - gritou Jairo – olhe ali.
Através
dos óculos eles viram uma imagem saindo da terra, na base de um
carvalho antigo em frente a uma casa abandonada. A forma se
movimentava devagar mas com determinação em direção à casa dos
Flandres, atravessando cercas, casas e muros. Pam pega o rádio.
- Didio, ele está indo em sua direção.
- O que eu faço? - gritou desesperado.
- Exatamente o que combinamos, faça ele vestir a jaqueta que dei. O sal que coloquei dentro do forro da jaqueta vai retardá-lo.
- Mas e ele não quiser vestir?
- Ora, ora senhor delegado, faça valer sua autoridade.
- Esta bem, esta bem, e depois?
- Se tudo der certo não haverá “depois”. Vamos tentar resolver por aqui.
- Vamos Jairo.
Saem
do carro, carregando uma sacola e duas pás e começam a cavar o
local onde eles viram o espectro sair.
***
Dijorge
vê o fantasma se aproximar e no desespero, tenta socar em vão o
fantasma, seus punhos atravessando-o. Sem poder fazer nada, observa o
espectro se aproximar de Will, como era conhecido, tentando
atravessar seu peito. Mas algo estava errado. Ele tentou enfiar sua
mão nebulosa no corpo do rapaz, mas algo o impedia, era como se
tivesse uma parede invisível impedindo que sua mão tocasse o corpo
do garoto. De repente, o espectro recolhe o braço e coloca as duas
mãos na cabeça, abre a boca num grito silencioso de pura agonia. Em
seguida leva a mão ao peito e olha para Dijorge, com um misto de
súplica e terror nos olhos. O que vem a seguir é totalmente
inacreditável, seu tronco começa a inchar, como um balão de fumaça
e explode em bola de luz, sobrando somente o vazio.
***
- Encontrei.
- Rápido, pegue as ervas e separe o cranio do resto do corpo e me de aqui.
Com
uma pequena marreta, Pam destrói o cranio e pegando as ervas que
Jairo tirou da sacola, faz uma pequena trouxinha com restos de tecido
do morto, incluindo sal e pequenos pedaços do cranio esmagado.
Amarra com um rosário e ateia fogo, colocando em seguida dentro da
cavidade toráxica do esqueleto, no lugar onde deveria abrigar o
coração. Conforme o chumaço ia se incendiando, o esqueleto ia se
transformando em pó, aos poucos, até restarem apenas cinza na cova.
O
rádio de Pam chama.
- Pam, ele desapareceu, virou fumaça.
- Eu sei.
- Acabou?
- Sim. Terminou a vingança do coração.
Fim
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1Ajax:
personagem da Marvel Comics, que tem o poder de alterar a densidade
de seu corpo e atravessar objetos sólidos.
Conto inscrito no primeiro concurso de contos do grupo Overlook Hotel, em junho de 2008.
Jack Sawyer
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